segunda-feira, 30 de março de 2015

Do tamanho que a gente quer

Do tamanho que a gente quer

Tarde quente na Ema. Procurava eu pelo Dino, guia Kalunga e grande amigo, quando passei pela casa de D. Leó para ter notícias dele e para pedir a benção da velha matriarca.
Lá chegando, fui entrando e, como de costume, havia visitas. Desta feita era o Véi Vito com seus 102 anos, morador do Vão de Almas, bem próximo à cachoeira final do Custa-me-ver, no Rio Almas, neste local denominado pelos Kalunga de Rio Branco.
Após muita prosa, café com rapadura e mintira, um delicioso bolinho frito de polvilho e ovos caipira, o tempo fecha, escurecendo o céu.

Os dois velhos levaram a prosa para a tempestade que estava prestes a cair.

O Véi Vito então disse: “Ô Lió ! Aqui nesse mundo eu só tenho medo de rai!
Ela respondeu: Eu tenho medo de rai e de chuva de barui. Tamém tenho medo da escravidão. Nóis num alcançô, mas minha mãe me contô  cumo era!!!

E finalizou com um sorriso : “Mas tem nada não, Véi Vito ! A raiva e o medo é do tamanho qui a gente qué!


Em meio a trovões, esperamos a chuva passar conversando e tomando “café de duas mão” (1).


(1) Café acompanhado por uma quitanda.

segunda-feira, 23 de março de 2015

As dificulidades

As dificulidades

No início do meu trabalho no Sítio Kalunga, eu tinha uma imensa vontade de conhecer o Vão de Almas. Nome místico, descrições maravilhosas, lugar quase inacessível. Conhecer o vão é privilégio de poucos. Exclusividade é a melhor palavra para descrever a sensação de estar lá. 
Estávamos nós na casa de Ester Fernandes de Castro , na Fazenda Ema, conversando com alguns membros da comunidade, quando o Marcelo Sáfadi, meu companheiro, perguntou:
- “ Ô  “Seu” Augusto, como é o Vão de Almas ? Como chegar lá ? O senhor pode nos levar lá um dia?” 
Augustão, como era conhecido na comunidade, respondeu:
-“Ocêis qué í lá nas dificulidade ? Tá bão, eu vô levá ocêis lá no Vão de Alma”
 Algumas semanas depois, partimos num grupo de cinco visitantes numa viagem no lombo de mula, transpondo a Serra da Boa Vista ou do Kalunga na estrada cavaleira até o Vão de Almas. Foi a primeira de uma série.

segunda-feira, 16 de março de 2015

A entrevista

A entrevista


Na segunda vez que estive na casa de Emiliano, na região da Vazante, no Vão de Almas, eu fazia parte de uma equipe de estudos e pesquisas do WWF-Brasil, composta pelo coordenador Ricardo Mesquita, pelo estagiária Lorena Rodrigues, pelo  cineasta Pedro Nabuco, por Emiliano, por “Seu” Augustão”  e por Dino, Kalunga  da Fazenda Ema.
Após almoço no Pouso do Padre, à beira do Rio Branco ( Almas), partimos em direção da casa de Emílio, como é conhecido, para pernoite.
No dia seguinte, banho no verde rio Capivara, juntamente com os filhos de Emílio.
Antes de partir para a próxima parada, Lorena iniciou uma entrevista para preenchimento do formulário da pesquisa. Entraram em casa enquanto nós preparávamos os animais e as tralhas de viagem.
A entrevista durava cerca de 30 minutos, mas desta vez, estava demorando mais. Uma hora se passou e nada da entrevista acabar. Quarenta minutos depois, Emílio e Lorena saíram. Ele, sério e ela, em prantos, emocionada!
Perguntei imediatamente o que havia acontecido.
Lorena respondeu : “ Lana, não consegui preencher um campo sequer ! Liguei o gravador, fiz a primeira pergunta e o Emílio não parou de falar da luta e da história dos Kalunga ! “ 

E desabou a chorar !

segunda-feira, 9 de março de 2015

O Homem da SANEAGO



O Homem da SANEAGO


Cumprindo mais uma etapa do programa “ Ação Kalunga”, do Governo Federal. Um técnico da SANEAGO – Água e Saneamento de Goiás S.A.– chegou à casa de D. Leó.
Logo tirou uma planta de um pequeno banheiro com caixa d´água e um tanque com uma torneira e começou sua explicação dizendo que, em breve, ela teria apenas que abrir a torneira e teria água bem na porta de casa.
Ela olhou, olhou , e disse: “ Esta tal de torneira é o recursinho igual a qui tem na casa de Grigório ?”
O homem da SANEAGO, todo animado, foi dizendo que sim, que era igualzinha.
D. Leó respondeu: “ Eu num quero esta agüinha minguada, não ! Eu gosto de banhá e de lavá minhas rôpa e minhas vasia é lá no rio.”
O homem da SANEAGO argumentou então: “ A senhora não vai precisar mais ir ao rio!”

A pronta resposta foi: “ Mas eu gosto de ir no rio ! Tem cinqüenta ano que eu vô lá duas, treis veiz por dia desde minina !” O sinhô leva esta agüinha minguada pra ôtro!”

quinta-feira, 5 de março de 2015

A Arara, o Mico, a Onça e a Peixa - os “bicho no bolso”!

A Arara, o Mico, a Onça e a Peixa - os “bicho no bolso”!

Hoje é março no Kalunga. Amanhã é abril depois vem maio,e junho. Aí começam as festas. No dia 15 é o Império de N. S. d’Abadia, a famosa festa da romaria do Vão de Almas.
É como ir a Meca para os muçulmanos. Kalungueiro que pode estar lá, estará lá. E eles chegam para a festa provenientes de todas as comunidades do extenso sítio Kalunga e região vizinha, viajando muitos quilômetros a pé ou de mula.
Os que trabalham fora, em Cavalcante, Alto Paraíso, Brasília e Goiânia, planejam suas férias em  agosto para poderem estar lá.
Para ir para a romaria, só em grande estilo e, para tal, todos fazem suas economias para poder comprar roupas, chapéus e botas novas, além dos equipamentos de cavalgar, como novos arreios e implementos e até um cavalo ou uma mula melhor.
Para se dar bem com as garotas, os moços kalunga têm que estar bem. Bem com a vida e bem na aparência.
Eles também têm que estar com os “bicho no bolso” !
Certa vez, na romaria, um companheiro pergunta para o Xodó, grande amigo kalunga do Vão de Almas se ele tinha dinheiro.
Ele imediatamente respondeu feliz: “ Tenho sim ! Duas arara, um mico, duas onça e uma peixa! “
O outro responde : “Ah, intão ce ta podendo, uá ! Paga uma cerveja prá nóis”

Deduzi então que o Xodó tinha R$ 240,00, que para a ocasião, era um dinheiro suficiente para todos os cinco dias de festa.

segunda-feira, 2 de março de 2015

Ombro Pequeno

                                                          Ombro Pequeno

No ano 2000 adquiri uma pequena propriedade perto ao Sítio Kalunga e resolvi lá construir uma casinha Kalunga. Para isto, contratei meu querido amigo e guia Dino e seus companheiros.
Estrutura do telhado levantada, partimos para a tarefa de cobrir a casa com o telhado de palha de da palmeira Pindoba, conforme reza a tradição local.
Dino e seus companheiros colheram milhares de folhas para a cobertura em um local distante cerca de três quilômetros da construção.
As folhas foram dispostas em dezenas feixes de cem folhas cada.
Peguei a caminhonete e lá fui eu, de encontro aos companheiros, seguindo uma estrada abandonada.
Lá chegando, logo tratamos de carregar a caminhonete.
Como a carga não coube no veículo, fui logo dizendo : “ Ô Dino ! Caminhonete pequena né?”
Ele respondeu de pronto: “ Pequena não, “Seu “ Lana !  Pequeno é o ombro da gente!
‘Tamo acostumado a levar os feixe no ombro e caminhar longos trechos para construir uma casa. Dá mais de trinta viage pra cada um”.

Fiquei pasmo e de bico calado diante da resposta.