segunda-feira, 11 de abril de 2016

Joãozinho e o menino branco

Joãozinho e o menino branco


Manhã de sábado no Engenho. Dia claro, muito calor e um banho de rio faria muito bem.
Estávamos eu, Arlethe (Kalunga do outro lado do Paraná, no Tocantins) e nosso filho João Francisco na época com 4 anos de idade, na casa de Sirilo e Dona Getúlia.

Chega um carro de visitantes, um casal de suíços com um menino de uns 3 ou 4 anos, todos branquíssimos e loiríssimos prateados.

João, acostumado em conviver com os Kalunga e com sua família negra por parte de mãe, me perguntou:
“Pai,  e este menino branquinho? Compra ele pra mim?”

Dona Getúlia logo respondeu: “Mas môço ! Nóis qui era escravo e João querendo comprar minino branco!”


Todos riram, mas os Suíços nada entenderam. 

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Já posso casar!

Já posso casar!

Paulino, 16 anos, filho do meu amigo Emiliano, conversando comigo sobre as responsabilidades de cuidar dos irmãos, sobre a vida no Vão de Almas, sua família e seus sonhos, tinha uma linda namorada, menina nova com seus 14 anos, muito faceira e dedicada aos afazeres domésticos e aos estudos.
 Em bom Português, Paulino me disse: “Ô “Seu”Lana! Eu sei fazer uma casa, sei plantar roça, sei criar gado, já tenho uma mulinha e umas vaquinhas. Já posso casar!!!”
Dentro da realidade do Vão de Almas em 2001 ele estava certo.
Apenas dei um conselho: “Casa agora não, Paulino. Você está jovem e tem muito que viver.”
Paulino seguiu meu conselho e hoje está homem feito e, penso eu, solteiro.

Um bom partido na comunidade!

segunda-feira, 28 de março de 2016

As cumida provisória

As cumida provisória


Dona Santina vivia na beira do Rio Paranã, lá pelas bandas do Riachão – Sítio Kalunga, 
município de Monte Alegre, Goiás.

Quando eu a levava de volta à comunidade, juntamente com a Dona Procópia, após um fórum em Alto Paraíso de Goiás, fomos conversando pelos quase 200 km até a casa de dona Procópia, pois de lá ela seguiria a pé até a sua casa.

Sempre curioso sobre os saberes e fazeres dos Kalunga, perguntei a ela sobre as fontes de alimento utilizadas pela comunidade.
Ela respondeu: “ Nóis come é as cumida provisória: o arroz, o feijão, a mandioca, o milho, a farinha, as abobra, uma carninha....... as cumida provisória mesmo”.


Entendi as comidas provisórias como provisão que necessita reposição com o plantio, a colheita e a criação de animais.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Religião



Religião 



Reunião sobre Religiosidade Afro-Brasileira no I Encontro Afro-goiano, na Cidade de Goiás, em maio de 2004.
Presentes, diversos doutores e mestres afro-brasileiros de universidades de todo o país, muitos deles vestidos com roupas afro-religiosas e também representantes do Candomblé e da Umbanda.
Também presentes, representantes de diversas comunidades afro-brasileiras, quilombolas ou não, representantes do Sebrae/GO, de governos municipais, estaduais e federal.
Presentes, representantes da Comunidade Kalunga, que viajaram um trecho de mula e outro de ônibus do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, no Nordeste Goiano, à cidade de Goiás.
Na ocasião, tive o prazer aceitar a missão de organizar e acompanhar o grupo.


Muito foi falado a respeito das religiões afro-brasileiras. O vocabulário utilizado pelos palestrantes, sempre de difícil compreensão para os Kalunga, ficou ainda mais complicado com o uso de palavras de origem africana ligada à religião, como Ogum, Oxumaré, Iemanjá, Orixás.

Os Kalunga ouviam tudo, mas não se interessavam muito pelo tema.
Num dado momento, o palestrante disse que gostaria de saber como era a religiosidade afro-brasileira no Sítio Kalunga.

Foi então que, “Seu” Augusto, velho Kalunga, alto e garboso, com sua voz grave, disse: “Eu tava isperando o sinhô perguntá! Lá no Kalunga não tem nada disso que cêis tão falando não! Num tem oxum, num tem guludum!
Lá no Kalunga tem Jesus, Maria e José, tem São João, São Gonçalo e São Sebastião, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora do Livramento, Nossa Senhora das Neves e, principalmente, tem a Nossa Senhora d’Abadia, que nos abençoe a todos”.
Sem eles, num tem tradição, num tem cultura e nem comunidade Kalunga.
Sem os santo, o Kalunga não existe!

E continuou: “Agora cêis dão licença que nóis vai conhecê a cidade que os escravo construiu !”


Todos da comunidade o seguiram, inclusive eu.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Cine Kalunga

Cine Kalunga


No início dos anos 2000, eram poucos os documentários ou registros realizados no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga e os que haviam, nem sempre eram disponíveis como é hoje, com as facilidades de acesso e comunicação que a Internet nos dá.

Um desses filmes, Kalunga, realizado pelos cineastas Pedro Nabuco, Sylvestre Campe e Luiz Elias, documentou toda a história do povo Kalunga, suas lutas, sua cultura, sua relação com o meio ambiente de maneira ímpar.
Essa obra, cujas pesquisas e filmagens tiveram início nos anos 80 foi premiada pelo Júri Popular do XI FICA – Festival de Cinema Ambiental de Goiás de 2009 e depois exibido com sucesso em diversas cidades do Brasil e do mundo.

A comunidade Kalunga solicitou então que o filme fosse exibido para a comunidade durante a Romaria de Nossa Senhora d’Abadia, em agosto de 2011 e, com apoio da AGEPEL – Agência de Cultura Pedro Ludovico Teixeira, foi constituída uma equipe, composta por Paulo Munhoz, Cláudio Mendes, Eudaldo Guimarães e eu, pela AGEPEL, pela cineclubista Carolina Paraguassú como operadora e pelo colaborador o cineasta Frederico Felipe,
partiu então para o Vão de Almas para realizar essa missão.
Após pernoite em Cavalcante, demos início ao trecho mais difícil da viagem pela longa e sinuosa estrada de chão que leva à romaria.

Montamos nosso acampamento, tiramos a poeira no Rio das Almas, lá denominado Rio Branco e fomos definir o local da exibição.

No dia seguinte, 13 de agosto, demos início à montagem do telão e aos equipamentos e recursos para podermos “passar” o filme no horário combinado como Imperador da Festa, de modo a não atrapalhar os rituais e festejos da comunidade.

Passamos a tarde a divulgar boca-a- boca o evento do Cine Kalunga. No início da noite, demos a última chamada nos altos falantes e Carolina deu início à exibição.

As pessoas foram se aglomerando em frente à tela, umas sentadas outras em pé, sendo mais de trezentos os presentes à exibição.

Muitos comentavam, maravilhados, sobre os locais, as comunidades, as pessoas conhecidas, identificando os atores e comentando.
Outros tampavam o rosto ao ver pessoas já falecidas falando no vídeo e também comentavam.

Eu fui passando e conversando com um e com outro para ver a opinião dos presentes quanto ao filme.

Num dado momento, aparece a cena em que o então presidente Lula discursa, dizendo que veio ao Kalunga não apenas para trazer eletricidade e programas sociais.
“Estou aqui com o governador do estado de Goiás, ministros, prefeitos e vereadores para atender a principal reivindicação do povo Kalunga. A titulação das terras!” – disse ele em alto e bom tom!
Os presentes no discurso aplaudiram e festejavam!

Os presentes na exibição do filme se calaram perplexos, pois, nove anos depois,  a maioria dos Kalunga não tinham e ainda não tiveram as terras do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga devidamente desapropriadas e tituladas!

Foi aí que o “Seu” Tomás virou para “Seu” Domingos e disse:

“ – Ô Domingo! Eu num disse qui o home era mintiroso? Óia a prova aí, ó!”

segunda-feira, 7 de março de 2016

Emiliano e o Gole d’Água



Emiliano e o Gole d’Água

Emiliano é um Kalunga instruído, pois foi professor de alfabetização de adultos e fala Português  com perfeição, o que ensinou bem a todos seus nove filhos e filhas,como José e Paulino, companheiros de viagens e cavalgadas.
Conheci Emiliano em 2000, quando fomos conhecer os caminhos do Engenho para o Vão de Almas e Choco, numa cavalgada de quatro dias.
O grupo, composto por técnicos do WWF-Brasil, nossos guias kalunga Benedito e Salomão, partiu da casa de Sirilo, no Povoado do Engenho, logo cedo, após pernoite no local.
Logo após a partida, encontramos com Emiliano ou Emílio, como é conhecido na comunidade, a pé, de bermudas e sandálias havaianas, com um embornal que continha o que ele precisava – farinha, carne seca, fumo, palha e o artifício - isqueiro de chifre, algodão, uma pedra “figo”-de - galinha” e um “fuzil” (fusível - pedaço de ferro) para a viagem de quase 20 km descendo a serra.
Água ele não levara, pois conhecia todas as fontes do caminho.
Emiliano humildemente perguntou se podíamos viajar juntos e se juntou ao grupo, andando ligeiro e saltando pedras como um garoto, mesmo com seus cinqüenta e tantos anos.
Ele me lembra o Gilberto Gil, tanto fisicamente como na maneira de falar. Depois de muitas conversas e “causos” ao longo da estrada cavaleira, sempre com o “paieiro” na boca, paramos para um descanso sob uma árvore frondosa.
Foi aí que peguei minha garrafa d’água e bebi o último gole restante.
Emiliano me perguntou: “A água deu, Lana?”
Respondi que sim e então ele disse: “Você nunca vai saber! A gente só sabe se deu quando sobra!!!

Logo adiante, bebemos água fresca do Córrego Água Perdida, no alto da serra!

quarta-feira, 2 de março de 2016

As irmãs tronco véio Kalunga



As  irmãs tronco véio Kalunga

Em 2003, durante as gravações do programa Mochilão – MTV, com a apresentadora Fernanda Lima, fui contratado para acompanhar a equipe até o Sítio Kalunga. Convidei então meu amigo e parceiro Daniel Faleiro para fazer a logística com a sua Land Rover. Sua esposa na época, Francine estava com ele e combinamos de deixá-la algumas horas na casa de Dona Leó até terminarmos as gravações na Fazenda Ema.
Ao retornarmos, encontramos Francine sentada à sombra do barracão de farinha, em companhia de Dona Leó e suas duas irmãs.
Dona Leó, da “era de 11”, tinha então 92 anos e suas irmãs, Dona Marta, 94 e Dona Maria, 96. Como quatro meninas, conversavam animadas quando chegamos. Já conhecia as irmãs, Dona Marta, mãe do meu amigo Baínho e Dona Maria tronco véio  do Vão de Almas. Perguntei a ela como ela tinha vindo do Vão para a Fazenda Ema e ela respondeu: “ Eu venho de mula ! Eu num dô mais conta de andar a pé não meu fio, mas eu vô miorá !”
Foi então que Dona Leó interferiu : “Miora não, minha irmã ! Noís num miora mais !

E as três irmãs tronco véio Kalunga caíram na risada !